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Cuidado com os estelionatários da comunicação (Eunice Mendes)

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27/03/2015 06h50

Cuidado com os estelionatários da comunicação

A comunicação é, sim, recheada de belas palavras, mas elas não passam de mentiras bem contadas

Eunice Mendes

Em tempos de delações e negações, proponho aqui uma reflexão incômoda, porém necessária, sobre o outro lado da comunicação. Refiro-me àquelas situações em que o poder da oratória é usado para o mal e, infelizmente, uma vez manipulado por gogós e informativos habilidosos, funciona com padrão FIFA.

Alguém pode dizer que essa é uma prerrogativa dos doutos da área jurídica, advogados pagos a peso de ouro para defender os envolvidos em operações que prometem lavar a jato todas as mazelas deste país. Mas, como profissional da comunicação e alguém que leciona nessa área, posso atestar que a comunicação bem feita e com intenções nada edificantes faz parte não apenas das supremas cortes para as quais os olhos do mundo inteiro estão voltados neste momento, como também do nosso dia a dia, e temos de tomar muito cuidado para não sermos a próxima vítima.

Por trás de todo golpe há sempre uma boa comunicação, não aquela do excelente vocabulário e na qual a estrutura do discurso é baseada em argumentos consistentes, com harmonia entre introdução, desenvolvimento e conclusão, mas a oratória usada a serviço da manipulação. A comunicação é, sim, recheada de belas palavras, mas elas não passam de mentiras bem contadas, frases cuidadosamente articuladas para penetrar na mente e no coração dos incautos como se fosse música. Trata-se de uma composição perfeita que pode causar danos irreversíveis.

Vejamos um exemplo clássico:

Ele é estrangeiro e, no aeroporto, encontra aquela que diz ser a mulher da sua vida. Moça inteligente, espirituosa, bem-sucedida, respeitada e amada em seu círculo social. Mulher solteira e independente.

Fala macio, e com seu sotaque delicioso diz ser um grande empresário do ramo de exportação. Tem planos grandiosos, afinal não há espaço para a mediocridade em sua vida. Logo de cara, convida a interlocutora hipnotizada para acompanhá-lo em viagens internacionais e acena com presentes de marcas famosas. Parece ser o príncipe encantado das Arábias e ela, a princesa dos sonhos. As promessas de amor são forçosamente testemunhadas pelas demais pessoas, como se dizer e fazer fossem de fato a mesma coisa.

Seis meses depois, ele se muda para a casa da mulher da sua vida. Os retratos dos amigos começam a desaparecer das paredes, ela não recebe mais visitas e acaba por descartar a vida anterior. Ele tem ciúme de tudo, algumas vezes chega a ser violento… Mas o amor compensa tudo e as palavras dele cicatrizam as feridas. A solidão dela acabou. As chances de um casamento feliz se anunciam.

Logo se tornam sócios e compram um carro caríssimo em nome dela, naturalmente. Fazem programas caros, que ela banca, naturalmente. Aos poucos, a companheira convertida em corretora de financiamentos vai assumindo todos os compromissos: paga as contas, endivida-se e, por pouco, não perde o apartamento conquistado com tanto esforço. Curiosamente, quando chamado às falas, ele sempre tem um bom argumento que o transforma na mais desprotegida vítima do mundo.

A família se preocupa, os amigos percebem-na mudada, algo parece estar muito errado nessa pretensa história de amor. Até que, por coincidência ou pela ajuda de algum tipo de investigação, descobre-se que o príncipe não passava de um sapo que já aplicou vários golpes, tem três identidades e sempre procura mulheres solitárias para seduzi-las com sua lábia irresistível.

Agora outra ocorrência menos óbvia, e por isso mesmo mais estarrecedora:

A aparência engana. Tem uma embalagem diferenciada, com um toque de sofisticação, tudo para indicar que, de fato, você está com um produto especial nas mãos. Na gôndola do supermercado, as cores vibrantes chamam a atenção. Está bem situado, ao alcance de mãos carentes, ávidas por se livrarem da mesmice dos sabores do dia a dia.

O rótulo é convidativo e, nele, você pode ler um texto com ar despretensioso e criativo, que destoa completamente do formalismo comum a esse tipo de comunicação. É de comer, mas parece capaz de entender todos os seus anseios e necessidades. E o melhor de tudo, sem invadir a sua privacidade. Impossível não levá-lo para casa. Uma, duas, três vezes. O gosto, afinal, não parece tão especial assim, mas você não é o único a acreditar no que lê, ainda mais escrito por alguém que demonstra ter tantas habilidades comunicativas. Além disso, na sociedade do descartável, ter medo do novo não é de bom tom. Até que você fica sabendo que o órgão responsável por fiscalizar propaganda enganosa recebeu uma denúncia. Aquilo que o produto dizia entregar não era verdadeiro. Era uma historinha para inglês ver, como se diz por aí. E o pior é que nem deu tempo de experimentar o efeito placebo.

Você já deve ter percebido que estamos falando sobre infrações penais graves, tipificadas pelo Código Penal e também pelo Código de Defesa do Consumidor. E também sobre uma comunicação dissonante: esteticamente perfeita, mas abominável do ponto de vista ético.

Isso é possível?

A resposta é afirmativa e não é difícil compreender o porquê. No mundo da comunicação, tal como em todas as searas da vida humana moderna, a aparência não corresponde à essência, por isso precisamos redobrar nossa atenção. E não apenas com o que está à nossa volta, mas, antes e sobretudo, em relação a nós mesmos. Todos somos igualmente responsáveis, pois, boa parte das vezes, nossas carências falam mais alto e pagamos qualquer preço por um pouco de afeto. Fazer 500 amigos em um só dia pelo Facebook é algo perfeitamente possível, mas como lembrou sabiamente o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, eu tenho 86 anos, mas não tenho 500 amigos.

A comunicação está indissociavelmente ligada ao sentido de palavras como laços e comunidade, mas precisamos aprender a formar esses vínculos. Refinar o autoconhecimento e a percepção que temos do outro, por exemplo, ajuda a perceber o que há por trás das palavras e dos gestos corporais, e, portanto, a repelir eventuais estelionatários da comunicação. Não se culpe por ter menos de uma centena de amigos, estar solteiro ou não consumir o melhor produto de todos os tempos da última semana. Se não comunicamos, não existimos, mas também faz parte do domínio da comunicação refletirmos sobre tudo aquilo que nem sempre é o que parece.

Eunice Mendes é atriz, pedagoga e especialista em Comunicação Empresarial há mais de 30 anos e tem 03 livros publicados.

Site www.eunicemendes.com.br

Cuidado com os estelionatários da comunicação (Eunice Mendes)

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