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Democracia na era da hiperconcentração de renda

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19/07/2017 18h21 – Por: Ney Lemke

A tese de Piketty de que estamos assistindo a um aumento de concentração de renda acelerado tem levado a inúmeras especulações sobre quais serão as
consequências sociais dessa progressão. Ainda que seja extremamente perigoso confundir tendências de longo prazo com variações em escalas de tempo muito mais
curtas, aparentemente estamos assistindo em várias democracias do mundo crises de representação e situações totalmente inauditas.

O Reino Unido um dos fundadores dos sistemas democráticos modernos, vive desde o Brexit uma profunda crise. Thereza May após uma tentativa de melhorar a
representatividade de seu partido através da convocação de eleições gerais, assiste uma dissolução de sua capacidade de governar. Trump após vencer uma
eleição por uma estreita margem, vive um governo que gera e convive com graus inimagináveis de instabilidade que incluem uma real ameaça de impeachment devido a uma bastante provável conspiração com o Kremlin. No Brasil, o impeachment de Dilma foi seguido por um governo que extremamente fragilizado, caminha na corda bamba para tentar se manter.

Em linhas gerais nesses três casos assistimos em maior ou menor grau a influência do poder econômico na manipulação de resultados eleitorais através de
um uso massivo de redes sociais e do uso de inteligência artificial para conquistar corações e mentes através de estratégias de micro-gerenciamento de
marketing com finalidades políticas. O sucesso dessas estratégias explorou em geral dois aspectos fundamentais: volumosos recursos financeiros capazes de
implementar fluxos de trabalho computacionais que localizaram nas redes sociais eleitores indecisos e mais prejudicados pela globalização e de
encaminhar mensagens capazes de influenciar suas opiniões. Ou seja foram capazes de convencer as maiores vítimas do processo de concentração de renda de que as frágeis políticas mais a esquerda eram as responsáveis por uma situação que visavam mitigar e que a solução seria a eleição de políticos que apoiam medidas que deverão acelerar ainda mais esse processo.

A administração Trump se propõe a cortar investimentos em saúde para permitir uma redução massiva dos impostos para os mais ricos, no Brasil o governo Temer
quer reformar o Estado brasileiro cortando as políticas públicas que minimizam a concentração de renda e que essencialmente vão implicar em uma brutal redução da capacidade do governo em atuar em áreas básicas que incluem desde segurança pública até educação.

Mas não é apenas uma questão de cortes orçamentários, nos três casos o que assistimos é um grande esforço por parte do 1% mais ricos em solapar a imagem
institucional da classe política. Trump e Temer cotidianamente maculam sem nenhum pesar a própria figura de presidente da república. Thereza May ainda
que seja mais poupada segue em uma linha próxima a isso representada essencialmente com a escolha de Boris Johnson pela política externa e um profundo desprezo pelas organizações supra-nacionais como a União Européia.

Mas uma análise da crise pela qual passamos ainda inclui dois aspectos contraditórios que deverão moldar nosso futuro. O primeiro deles é o avanço da
Inteligência Artificial que deverá extinguir uma parte substancial dos empregos sejam eles de manufatura, sejam os de profissionais liberais. A vitória do time da Google contra o campeão mundial de Go implica que essencialmente os computadores se tornaram nossos superiores em qualquer jogo de tabuleiro, mas
não devem parar por ai, avanços em áreas como o direito, a medicina, e as forças armadas estão apenas iniciando. Em todos esses casos a mensagem é clara,
os humanos devem se tornar dispensáveis para a realização da maior parte das atividades que hoje nos garantem salários. A base desses avanços é
essencialmente a junção bem sucedida da aplicação de ciência básica, aplicada e até mesmo de filosofia.

O outro aspecto essencial é a Crise Climática, cujos efeitos no presente são cada vez mais evidentes e incluem o degelo das calotas polares, o aumento de
efeitos climáticos extremos, mas que também já implicam no redesenho de vários setores da economia para implementarem soluções limpas. Ainda que a pesquisa em clima tenha em linhas gerais origem no mesmo caldo cultural que o avanço da inteligência artificial, essa sofre de uma desmesurada resistência nos meios
políticos. A repulsa é tão marcante que inclui um esforço desmesurado para não apenas desacreditar as pesquisas sobre clima, mas também para abolir abordagens racionais e até mesmo negam importância dos fatos na tomada de decisões políticas. Visando disseminar e justificar esse modus operandi, esses grupos políticos fazem uso pesado das enormes capacidades que a inteligência artificial e que muito dinheiro podem realizar. Utilizando as mesmas ferramentas utilizadas pela alt-right para vencer eleições.

Ainda que no quadro atual a capacidade de resistência da democracia liberal de sobreviver à esses ataques pareça improvável, existem evidências ainda
puntuais de alguma resistência seja pela retomada de movimentos sociais de cunho popular nos EUA e no Reino Unido seja pela capacidade de se reorganizar
em torno de um novo centro no caso francês. O caso brasileiro pode se mostrar emblemático, ainda que a sociedade civil mostre sinais tênues de renascimento. o sistema político está em vias de dissolução e de reorganização. O que pode abrir espaço para a refundação da vida pública no Brasil, quando a
sociedade civil passará a ter um papel mais relevante do que teve até hoje. Mas parte essencial dessa capacidade de reação depende de nossa capacidade de perceber que muitos dos efeitos que julgamos particulares, podem ser manifestações locais de processos globais e cuja solução dependerá essencialmente de coordenação internacional entre agentes da sociedade civil.

Colaboração de Ney Lemke é professor do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu.

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