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Não importa o percentual, a violência contra as mulheres continua

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20/04/2014 06h18

Até agora, em 2014, 26 homens foram pegos em flagrante cometendo atos libidinosos e desrespeitosos contra mulheres.

Breno Rosostolato

“Infelizmente foi um fato que aconteceu. Estava muito apertado no trem e eu não aguentei”. Esta foi a frase proferida por Adilton Aquino dos Santos, 24 anos, acusado de abusar sexualmente de uma mulher de 30 anos dentro de um vagão da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), em São Paulo. Na tarde de segunda, na estação da Luz, região central da capital paulista, o homem tirou a calça e chegou a ejacular nas nádegas da vítima. Passageiros que presenciaram o crime ficaram revoltados e espancaram o suspeito. Este não é um caso isolado. Até agora, em 2014, 26 homens foram pegos em flagrante cometendo atos libidinosos e desrespeitosos contra mulheres.

Acontece que não somente estes abusos assombram a vida das mulheres como uma outra atrocidade à liberdade e à dignidade delas foi revelada em uma pesquisa realizada dia 27 de março pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Num primeiro momento foi divulgado que 58,5% dos entrevistados concordam totalmente (35,3%) ou parcialmente (23,2%) com a frase “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. O estudo também demonstra que 65,1% dos entrevistados concordam inteiramente com a frase “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Um detalhe importante, do total de entrevistados, 66,5% são mulheres.

Em uma nota divulgada no dia 04 de abril, o instituto pede desculpas e informa que houve um “erro relevante”, motivado por uma troca de gráficos que inverteu resultados de duas das questões. Na questão “Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar” os dados foram invertidos com a da questão “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Nossa que bom, que alívio! Não são 65%, mas 26%. Não é uma diferença de 39% que muda alguma coisa. A violência e o desrespeito contra a dignidade das mulheres continuam firmes e fortes.

Os entrevistados foram questionados com base em afirmações pré-formuladas pelo instituto. Ao todo, foram ouvidos 3.810 pessoas entre maio e junho do ano passado em 212 cidades. Os pesquisados apontavam se concordavam ou discordavam, total ou parcialmente, com os questionamentos, ou se tinham uma posição de neutralidade em relação ao assunto.

Outro dado bastante relevante da pesquisa é que 56,9% discordam totalmente da afirmação “A questão da violência contra as mulheres recebe mais importância do que merece”, demonstrando que o assunto está longe de se esgotar, necessitando cada vez mais de uma discussão profunda sobre esse tipo de violência. É uma resposta aos que criticam o movimento feminista, que não se limita àquele iniciado na década de 80, mas ao que se perpetuando desde então, contra uma opressão de cinco mil anos que dificulta as transformações de mentalidades e a conscientização.

A pesquisa revela aquilo que, notoriamente, já se constata por aí, nas residências, no trabalho, nas ruas, por todo lugar: a crueldade do preconceito contra as mulheres. O machismo que se estabelece como um conceito aceito pela sociedade, em que as pessoas, consciente e inconscientemente, agem com naturalidade, conduzindo suas vidas às margens da misoginia. Os dados da pesquisa são incontestáveis e revelam que não somente é de opressão que se faz a violência contra as mulheres, mas também considerando-as culpadas pelos atos que sofrem. Como se as mulheres tivessem culpa de serem mulheres. Assim como na época da Santa Inquisição, em que elas eram torturadas e punidas com morte na fogueira, entre outras barbáries. Por serem sedutoras e sensuais eram tidas como amantes do diabo. Ou quando eram sumariamente estupradas, por ser esta uma prática comum entre os conquistadores de terras. Em comemoração ao êxito nas batalhas, tinham como prêmio o consentimento de violentar quantas mulheres quisessem.

Os resultados do Ipea revelam mais que distorções, mas o verdadeiro retrocesso, ou melhor, a permanência das mentalidades de pessoas que parecem ter criado raízes em épocas de trevas, em que o ser humano era relegado a um ser desprezível.

Tanto a pesquisa como os casos de abuso sexual nos transportes públicos são fruto de uma imposição do sistema patriarcal e que criou a hegemonia masculina diante da feminina. Cultura fatídica que sustenta o “machão”, que se apodera do corpo de sua mulher e faz dele o que bem entender. Estas concepções são construções sociais em que se menosprezam as mulheres, como se fossem seres inferiores. Transformaram o corpo que deveria ser privado num corpo público, pronto para ser corrompido. O feminismo, para aqueles que ainda acham isso uma grande balela, se constrói diferente do machismo, que foi impositivo e arbitrário. Se constrói como defesa para esta intolerância, contra atos de selvageria em que mulheres são mortas por romperem relacionamentos amorosos, ou que são espancadas por não satisfazerem seus maridos, muitas vezes, pelo simples fato de trabalharem fora de casa. As banalidades destes atos de violência se comparam aos argumentos e justificativas de quem as comete.

Quase que de imediato surgiu uma reação nas redes sociais, se opondo aos resultados da pesquisa. A campanha #eunãomereçoserestuprada foi idealizada pela jornalista Nana Queiroz, 28 anos, e em pouco tempo tornou-se uma coqueluche na internet. Foi criada para protestar contra a culpabilização da mulher em atos de violência sexual e recebeu o apoio da presidenta Dilma Rousseff, que declarou em seu twitter oficial “Nenhuma mulher merece ser vítima de violência, seja física ou sob a forma de ameaça”.

Outra campanha que também vem fazendo sucesso é a “Chega de fiu fiu”, contra o assédio sexual. Muitas mulheres podem até declarar que se sentem lisonjeadas ao passarem na frente da construção e escutarem os “galanteios” dos homens, desde um “bom dia” ou “vai ser linda assim lá em casa”. Estes podem parecer singelos, mas seja qual for o comentário, é invasivo e agride um princípio básico. Não é porque a mulher está em lugar público que ela também o é. O homem parece identificar e catalogar mulheres. Agindo desta forma é mal educado e intimidador. Ele emite sua vontade e coloca através do “fiu fiu” sua necessidade acima das vontades e do bem estar dela.

É difícil mulheres se sentirem a vontade com este tipo de abordagem, uma vez que constrange e intimida. Galanteios frutos do mesmo sistema patriarcal que doutrinou mentalidades. Já mulheres são categoricamente obrigadas a seguir regras específicas de como se portar, obediência, submissão e se sujeitar ao seu opressor. A “cultura do machão” criou conceitos e estereótipos do que são e de como devem ser os homens. Não podem dispensar mulher nenhuma e devem ser sempre viris. Existe uma constante preocupação com o pênis e a ereção. Falhar é inadmissível. Devem ser soberanos e comandar, ser fortes e não demonstrar fraquezas. Para tal, devem se impor, nem que para isso utilizem a violência. Enxerga a mulher como sua propriedade. Diante de todas estas exigências e cobranças da sociedade, os homens hoje dão sinais evidentes de cansaço e insatisfação em manter este papel masculino.

Fato é que estes abusos, estupros praticados e opiniões deturpadas sobre as mulheres são sinais de que, se por um lado as elas vivem com medo, porque estão nessa condição há séculos, os homens descobriram seus medos também, principalmente no que diz respeito à mulher autônoma, que possui opinião, é livre de estereótipos, tem iniciativa, sabe comandar e, no fundo, sempre possuiu sua importância na sociedade. Reflexo disso: homens que para manter sua posição de autoridade são violentos, seja no fato de tentar ou consumar o abuso sexual, ou em um simples “fiu fiu”, que não é tão inocente assim.

Breno Rosostolato é psicólogo e professo
r da Faculdade Santa Marcelina – FASM.

Não importa o percentual, a violência contra as mulheres continua

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