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Violência contra a mulher: escravidão persistente

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23/04/2017 22h22

A primeira mulher que lembrei, vítima desse tipo de violência, é minha parente, mas pode ser sua parente também

Vivian de Jesus Correia e Silva

Sempre as últimas a se servir à mesa e as primeiras a receberem as críticas pela refeição preparada. Responsáveis vitalícias pela louça na pia e pela limpeza do banheiro, os parentes as ocupam sem cessar e não se ocupam de pensar sobre isso. Isso sempre me intrigou, violência contínua, daquelas que não aparecem nas estatísticas, mas comprometem toda uma existência.

A primeira mulher que lembrei, vítima desse tipo de violência, é minha parente, mas pode ser sua parente também. Idosa, sua saúde é excelente, está bonita. Mas o desrespeito e a violência a acompanham da hora que acorda até o momento de dormir, no cotidiano e nas festas de fim de ano. E ela segue vivendo, inocente e útil, achando que a vida precisa ser assim.

Lembrei também da avó de um ex-paciente. Oriental gentilíssima. Quando o neto não podia vir, qual fosse o motivo, ela vinha pessoalmente justificar a ausência. Chamava a atenção ela vir até mim, às vezes depois de muito aguardar na sala de espera. Percebi tanta coisa nessa mulher, responsável pelo neto que os pais não queriam, útil e violentada, e inocente ainda.

Por fim, passou pela minha cabeça, uma ex-aluna. Depois de “dar a volta por cima” da história de violência sexual e pobreza, seguia sem conseguir completar o movimento e “sacudir a poeira”. Assim, pesava sobre seus olhos uma poeira sinistra que a impedia de dar limites para os parentes e para a igreja, impotente diante da exploração sofrida.

Idades e contextos diferentes, o que há de coincidência? Todas essas mulheres violentadas são escravas. Sim, escravas. Dos parentes, do conceito de gênero e de família.

Sei que as vítimas de violência mais frequentes, infelizmente, ainda são as mulheres negras e pobres. Com tantos direitos usurpados, o direito a viver sem violência é violado constantemente. As travestis, transexuais e transgêneros que, pela simples atuação social no papel feminino, também sofrem violências e manifestações gratuitas de ódio e repulsa.

Contudo, esse tipos de mulheres não me assustam. Remando contra a maré, estão fortes na suposta fragilidade, mistura de músculos com glamour, rendas e suor. A vida, a cor, a sexualidade, marcadores sociais numa cultura capaz de as expor aos perigos e injustiças desde muito cedo. A capacidade de lutar foi aumentando. Força e dignidade sendo lapidadas dia a dia, mesmo que a custa de sangue, às vezes mais do que de lágrimas.

Posso lembrar das muitas mulheres negras e pobres que já presenciei denunciando, das mulheres (biologicamente definidas ou não) frequentando redes de cuidados, delegacias, procurando setores de assistência psicológica, social, e até de assistência jurídica. Levando consigo sua luta e seus sonhos pessoais, e conscientes de que suas ações são a via de proporcionar não só a elas mesmas – mas a todos nós – uma vida melhor.

São diferentes das mulheres que me vieram à cabeça e que me apavoram. Sem perceber o abuso são poucas as chances de transformação. E o pior, eu percebia que, à medida que deixavam de ser úteis ou corresponder às expectativas dos parentes, eram violentamente punidas com a rejeição, a indiferença, a difamação, e até com ameaças de perder o precário apoio que porventura possuíam.

Não podiam ficar doentes.

Não podiam ter tempo para si mesmas.

Não eram acolhidas em seus erros ou dificuldades.

Tinha a nora que elegeu a casa da sogra como creche 24 horas. Havia a mãe que jogava a irmã menor aos cuidados da mais velha. Tinha o irmão que roubava dinheiro da carteira da irmã, e não via isso como roubo. Inclusive, ninguém o censurou por ele, além disso, morar com ela sem pagar nenhuma conta por uns tempos. Tinha o filho “independente”, morando sozinho e, deixando na casa da mãe suas roupas sujas para ela lavar. E passar. Nem preciso dizer que ele não pagava por isso. Também tinha aquela outra mãe cuja casa se tornou abrigo permanente de animais de estimação rejeitados pelos filhos que nunca viveram o lado B dos fofos bichinhos, que contempla o recolhimento das fezes ou a retirada dos pêlos entranhados nos estofados da casa.

Convém destacar a Igreja que prometia libertar a todos, mas alimentava a rede de escravidão feminina, ao colocar a família como sagrada e considerar a dedicação dessas mulheres como obrigação. Trabalho estressante, não remunerado e sem direitos de folga, décimo terceiro, férias ou aposentadoria. E ajudava a massacrar com exclusões, punições e culpabilizações a mulher que se mostrasse diferente da maioria escravizada.

Violência contínua é aquela que continua justamente porque a pessoa pouco percebe como entrou naquela situação e menos ainda sabe sobre as possibilidades de sair dela. Entende como destino e aceita, com assustadora resignação, que viver sendo mulher implica em aceitar tais situações. E, ao invés de estatísticas, leis ou de rede de cuidados, ela encontra a sua volta uma rede de intensa violência velada, de descrédito às suas dores, disposta a sempre devolvê-la a um patético papel. Mantendo-a na linha da escravidão e do desespero, da loucura e da exclusão, quem ouve suas reclamações… E se ela chorar, sangrar ou reclamar, não há sobressaltos, afinal, sangue, lágrimas e reivindicações são comuns na rotina das mulheres. E dos escravos. Será que Mulher chora à toa?

colaboração de Vivian de Jesus Correia e Silva é Mestra e Doutoranda em Psicologia e Sociedade pela Unesp de Assis

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